quarta-feira, 15 de outubro de 2008

UMA NOVA AGENDA MILITAR

REVISTA ÉPOCA DEBATE - SEMANA DE 13/10/08

Uma nova agenda militar
O desafio de reaparelhar as Forças Armadas para proteger nossas riquezas – como o petróleo do pré-sal – de vizinhos cada vez mais problemáticos
Roberto Lopes e Maria Helena Passos




NOVO DESAFIO - Soldados patrulham trecho da Floresta Amazônica próximo da fronteira com a Colômbia. A ação visa inibir movimentos de guerrilha no local


Segunda semana de fevereiro de 2008. O italiano Pietro Borgo, tipo baixo, pálido, cabelos grisalhos, de aparência não muito simpática, entra no gabinete do comandante da Marinha, almirante Júlio Moura Neto, em Brasília. A Iveco Defense, empresa que o executivo dirige em Bolzano, norte da Itália, acabara de ganhar, em consórcio com parceiros brasileiros, um atraente contrato do Exército para fornecer os protótipos da nova família de veículos blindados leves. Sobre rodas, eles substituirão os já cansados e obsoletos Cascavéis e Urutus, fabricados em São Paulo três décadas atrás.
O Exército requer 1.970 desses veículos, e Borgo tinha a informação de que os fuzileiros navais também precisariam de, ao menos, algumas dezenas deles. Basta saber que os Urutus que os fuzileiros levaram para patrulhar as ruas de Porto Príncipe, na missão de paz patrocinada pela ONU no Haiti, exibiram tamanhas deficiências que a Marinha teve de importar, em 2007, uma dúzia de carros suíços para levar seu trabalho a bom termo.
No catálogo multicolorido exibido por Borgo a Moura Neto, saltitavam os últimos modelos de blindados anfíbios, que, levados de barco até perto da praia, navegam lépidos em meio à arrebentação das ondas. Eles já equipam tropas de fuzileiros de diferentes Marinhas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, volta e meia, aparecem no Iraque e no Afeganistão.
Moura Neto olha curioso, mas sem interesse objetivo. Num inglês direto, diz:
– Poderemos comprar os mesmos carros que os senhores vão fabricar para o Exército.
Os olhos claros do visitante piscam rápidos, num gesto automático para se refazer da surpresa. Então não é de blindados aptos ao desembarque nas praias que a infantaria da Marinha do Brasil precisa? Como se adivinhasse a confusão instalada na cabeça do italiano, o almirante brasileiro afirma:
– Queremos esses carros para cruzar rios.
Dessa forma, o comandante da Marinha do Brasil sintetizou há oito meses a realidade estratégica que hoje orienta a defesa do país: os fuzileiros, infantaria de elite dessa força armada em qualquer país, cuja missão é lutar nas praias oceânicas durante o desembarque, terão de se deslocar, de forma protegida, a bordo de viaturas blindadas, no emaranhado de rios da Amazônia. Essa região brasileira, que por séculos viveu ao abrigo de quaisquer intervenções – locais ou estrangeiras –, é o atual centro dos acontecimentos.
Esta edição de ÉPOCA Debate trata dos desafios que essa mudança de prioridades impõe às Forças Armadas brasileiras. Espera-se, para as próximas semanas, o anúncio de um novo Plano Estratégico da Defesa Nacional, cujas linhas gerais são reveladas em primeira mão nesta edição pelo ministro Roberto Mangabeira Unger. Ao longo destas páginas, analisamos ainda a nova conjuntura a que os militares têm de responder, quão defasada está nossa estrutura em relação às necessidades e o tamanho do desafio de vigiar uma Amazônia tão vasta e despovoada. Também mostramos, num quadro histórico, como as Forças Armadas atuaram na vida dos brasileiros – com ações que vão da Proclamação da República à instauração da ditadura, do pioneiro esforço de proteção aos indígenas pelo marechal Cândido Rondon à ocupação do Rio de Janeiro para garantir a segurança das últimas eleições municipais. O Brasil é um dos três únicos países do planeta que fazem fronteira com dez ou mais vizinhos terrestres – os outros dois são a Rússia, com 14, e a China, com dez. Por isso, precisa ter tato diplomático para lidar com países com todo tipo de orientação político-ideológica. O arco de 15.700 quilômetros que vai da Tríplice Fronteira, na foz do Rio Iguaçu, em pleno Sudeste, até o Oiapoque, limite setentrional com a Guiana Francesa, reúne, pela primeira vez, governos irrequietos e até instáveis, cujas atitudes não podem ser para sempre tratadas com bonomia e condescendência.
Se a Amazônia subiu ao topo das prioridades para as Três Armas, a proteção a riquezas emergentes no Atlântico tende a mudar radicalmente o perfil modorrento que a Defesa assumiu em décadas recentes. Daí a preocupação do almirante Moura Neto, também, com a vigilância das águas, cuja exploração econômica é reconhecida como de direito do Brasil. São 4,4 milhões de quilômetros quadrados, ou metade do território brasileiro. “Amazônia Azul”, eis como seus colegas de farda a chamam.
Nela, figuram as jazidas submarinas que, entre os litorais do Espírito Santo e de São Paulo, prometem transformar o Brasil em exportador de petróleo. E, também, as rotas dos que atacam as tripulações de barcos mercantes, dos contrabandistas de armas e dos traficantes de tóxicos, sob vigilância dramaticamente precária. Por falta de recursos, o controle por radar do tráfego marítimo na área da bacia fluminense de Campos inexiste. Para monitorar a extensa costa do Amapá, onde é desovado o contrabando oriundo das Guianas, a Marinha dispõe apenas de um navio-patrulha de 200 toneladas. Seu canhão atira, no máximo, a 12 quilômetros.
Em 2007, cinco meses antes do diálogo entre o executivo italiano Pietro Borgo e o almirante Moura Neto, o general Enzo Peri, comandante do Exército, disse a congressistas em Brasília que, antes de pensar em instalar mais quartéis na Amazônia, é preciso “dar condições de operacionalidade às instalações que existem na fronteira”. Elas somam 71 e convivem com um terror: a inclemência do tempo, quentíssimo e de alto índice de umidade. Não faltam canhões, balas ou rádios de campanha, mas, sim, ar-condicionado ou geladeiras para que soldados nas fronteiras com a Venezuela, Colômbia e Bolívia possam guardar alimentos. E para que o comando da Aeronáutica abrigue suas modernas aeronaves, como os caça-bombardeiros AMX, verdadeiros computadores voadores.
Para uma sociedade que, há três gerações, vive ao abrigo de conflitos armados internacionais, essa conversa soa enigmática. No Brasil, há dois militares profissionais na ativa por mil habitantes. Nos Estados Unidos e na Colômbia, ambos metidos em conflitos quentes, essa proporção é cinco vezes maior. O solo brasileiro não é invadido desde 1865, quando pelo Rio Grande do Sul começou a Guerra do Paraguai, o maior conflito sul-americano da História, em que 10 milhões de brasileiros alocaram 200 mil soldados. Quando o governo fala em reativar a indústria de defesa e comprar equipamentos modernos, disposto a aplicar no setor 1% adicional do Produto Interno Bruto (PIB), é como se houvesse um pacto de solidariedade nacional para proteger a Amazônia ou as recém-descobertas jazidas submarinas de petróleo.
Por quase todo o século XX, o esforço com a defesa se justificou pela rivalidade temerosa com o maior poder econômico da Argentina. Hoje, o desafio está em outro lugar, em querelas localizadas. Algumas nada têm a ver com o Brasil – caso da insatisfação regional nas províncias limítrofes da Bolívia ou da guerrilha histórica que ocupa partes da selva colombiana e cujos protagonistas usam a porosidade da fronteira como retaguarda para abastecimento e descanso. A intuição reza que a inércia diante desse barulho pode ser inaceitável.
A difícil questão é respondida, no novo Plano Estratégico, com argumentos que defendem o interesse nacional. E superam o conflito ideológico dominante no século XX, que vigiava em nome do discutível “perigo comunista”. O Brasil chegou a conquistar, em nome dessa pendenga global, boa dose de autonomia em defesa, com programas de origem militar, como a pesquisa nuclear e espacial, a indústria aeronáutica, a de construção naval, e a aplicação militar da eletrônica e da informática que consumiram farto investimento. Mas tudo ruiu em 1982, quando o Brasil quebrou por causa de suas finanças externas. Denso e magro, um livreto escrito nos anos 1950 pelo então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, cérebro mais bem preparado da então nascente Escola Superior de Guerra, era o manual estratégico de defesa de que dispunha o país. Sob o título de Planejamento Estratégico, o Brasil emergia como potência média, de influência regional, protegida de confrontos “pelo guarda-chuva nuclear” dos Estados Unidos.
Para sair dessa condição subalterna, os militares articularam um projeto de autonomia tecnológica. Seus rebentos são a Embraer ou o sistema de propulsão do submarino nuclear, desenvolvido no Centro Tecnológico da Marinha, em São Paulo. A estabilidade da moeda, conquistada a partir de 1994, e a construção do mercado interno auto-sustentável trouxeram questões de longo prazo. O petróleo do pré-sal renderá dinheiro a partir de 2017. Até lá, o sistema de proteção terá de funcionar. Para coabitar com essa potência brasileira futura, alguns vizinhos falam cada vez mais grosso. Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, do Equador, já testam a paciência do Brasil para melhorar sua imagem no jogo político interno. No manejo dessa provocação, ninguém é mais hábil que Hugo Chávez, presidente desde 1999 da Venezuela, vizinho com que o Brasil tem sua maior fronteira terrestre.
Antigo oficial pára-quedista, Chávez gere US$ 60 bilhões recolhidos a cada ano com a venda do petróleo. Ele decidiu substituir seu equipamento americano, hoje carente de peças originais de reposição. Congressistas americanos afirmam que a Venezuela gastou, entre 2003 e 2007, ao menos US$ 4,4 bilhões em equipamento militar russo. Estima-se, entre os gabinetes militares do governo Bush, que o objeto do desejo de Caracas ao negociar com russos é um escudo antimísseis. Não existe – como jamais existiu – nenhum traço concreto de animosidade venezuelana. Mas a tarefa de proteger o espaço nacional começa pela manutenção do equilíbrio regional. A um sistema com esse grau de modernidade, tudo o que o Exército do Brasil tem para contrapor são alguns foguetes SS-60, para atingir alvos terrestres a uma distância máxima de 70 quilômetros, entregues aos quartéis, nos anos 90, pela empresa paulista Avibras.
Daí a fórmula dos blindados com vocação para operar nos rios que os fuzileiros pretendem comprar – desde que a fabricação e o conhecimento dos sistemas de combate estejam em mãos brasileiras. Daí também o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter participado na Helibras, em Itajubá, sul de Minas Gerais, em junho, do lançamento do programa de fabricação dos helicópteros Cougar, que só deverão voar com até 30 soldados equipados a distâncias de até 500 quilômetros pela Amazônia Ocidental em 2010.
A ansiedade dos oficiais da Marinha é grande e transparente. A proteção de reservas exploradas a mais de 350 quilômetros das praias do Sudeste como Tupi, a primeira grande jazida confirmada na Bacia de Santos, requer capacidade para voar até os limites da costa da África, para navegar submerso por um trimestre, para dissuadir eventuais atacantes que venham do Leste e para vigiar o Atlântico Sul inteiro, de modo a obter uma ponte na coordenação da defesa. São meios de alta tecnologia, cujos segredos de concepção e fabricação devem ser dominados por uma sociedade que almeja manter sua independência e requerem investimentos gigantescos e continuados. A decisão de enfrentar o problema é o primeiro passo em busca da solução. O desafio é enorme – como se vê pela reportagem seguinte, que descreve as carências e a defasagem do aparato bélico brasileiro.





BRASIL EM ARMAS
Uma avaliação do poderio militar brasileiro e dos desafios que ele deve estar preparado para enfrentar


O país na América do Sul
O maior do continente em números absolutos...




























Os pés de barro de um gigante
Um exercício teórico para defender nossas jazidas revela a penúria bélica que o país vive desde 1910
Roberto Lopes




SEMPRE ALERTA - O porta-aviões São Paulo na costa carioca. Se ele precisar entrar em ação, o Brasil não terá como dar conta da tarefa

Do litoral da Bahia até o porto estratégico de São Sebastião, na costa paulista, quase 10 mil marinheiros, soldados e aviadores se embrenharam num jogo de ataque e defesa em torno de uma jazida batizada de Yptu – anagrama de Tupi, primeiro grande campo de petróleo descoberto na camada do fundo do mar conhecida como pré-sal, ao largo da Bacia de Santos. Apenas parcialmente fictícia, ela inspirou, numa semana de setembro último, o exercício militar mais importante de 2008 realizado por militares das três forças brasileiras, equipados com 17 navios, 40 aviões e 327 veículos terrestres, em treinamento planejado por um semestre.
Na prática, o principal ator naval da Operação Atlântico – o porta-aviões São Paulo – foi dispensado. É que somente um de seus 12 jatos A-4 Skyhawk, espinha vertebral do poder dissuasório naval brasileiro, estava em condições de voar com motor novo, pois o contrato assinado com a Embraer para reaparelhar esse esquadrão de segunda mão, adquirido do Kuwait em 2000, foi congelado.
Entre cenas nos telejornais da noite do encerramento da manobra, com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, a operação vestiu com traje de gala uma situação de penúria material que só tem paralelo na história do Brasil independente do início do século XX. Governo federal e meios políticos reconhecem o quadro. No Congresso, em janeiro, o comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Juniti Saito, falou secamente no atual estado de obsolescência da frota de 720 aviões e helicópteros. No mesmo plenário, o comandante do Exército, general Enzo Peri, revelou que muitos soldados ainda se exercitam com fuzis da longínqua safra de 1965, presenteados à força de paz que debelou uma crise interna na República Dominicana.
“Raros são os que, no Brasil, entendem que segurança nacional é um bem público. E que nos cabe zelar por ela, haja, ou não, ameaças concretas no horizonte”, diz o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, especialista da Universidade de Campinas (Unicamp) em assuntos de defesa, explicando a falta de ressonância das advertências militares.
No Exército, há 190 mil homens e mulheres distribuídos por 900 quartéis. Ao menos 78% dos tanques são usados há 34 anos, 58% das viaturas há mais de 20, e a tecnologia de quase toda a artilharia foi desenvolvida na Segunda Guerra Mundial. Na Marinha, os 49 mil militares aposentaram, por falta de recursos, 21 navios de 1996 a 2005. As tripulações passam a maior parte do ano em terra. No começo deste milênio, o total dos dias de mar somou 2.161 – em 2004, foram somente 1.250.
Nesta crise, o limite fica a um passo do ridículo. Quando a França perguntou ao Brasil, em janeiro, se poderia exercitar seus caças navais no convés do porta-aviões São Paulo, cinqüentão arrematado em pechincha à própria França, os almirantes aquiesceram honrados pelo exercício conjunto. A seguir negaram, tamanho era o atraso na reforma do enorme barco de guerra.
A Aeronáutica expandiu o efetivo para 73 mil oficiais e praças, mas encolheu os vôos. Oito em cada dez de suas aeronaves têm mais de 17 anos de uso. Somente 37% delas estão disponíveis para ações de defesa. Saito, piloto de jatos supersônicos F-5, comparou as Forças Aéreas na América do Sul em 12 telas regionais, para os parlamentares. O Brasil emergiu como um gigante com pés de barro, cuja vantagem se restringe a aviões de vigilância a longa distância e de alarme aéreo antecipado, fabricados pela Embraer com tecnologia própria, e a sua capacidade de reabastecer outros aviões em vôo.
Nas aeronaves de caça e de bombardeio, de aptidão para defesa aérea no sentido estratégico, de jatos de reconhecimento, de helicópteros de ataque e de transporte, de mísseis de médio alcance e da disponibilidade de bombas inteligentes, Peru e Venezuela disputam a liderança. Em interceptadores, jatos supersônicos que fazem a dissuasão estratégica, o Chile lidera. E os venezuelanos, ao receber os Su-30 da Sukhoi russa, conquistarão superioridade.
Mudanças só quando o Brasil receber os 36 aviões em licitação no exterior até o fim de 2009, a ser entregues vários anos adiante. Hoje, dos 171 aviões de combate em condição de voar com as cores da FAB, figuram 12 Mirages 2000, alojados na goiana Anápolis, considerados aptos a proteger Brasília até 2015. Há também 47 veteranos F-5E, em reforma por um consórcio com uma empresa israelense. E outros nove, comprados na Arábia Saudita em 2006, além de jatos 53 AMX, de velocidade reduzida para ataque ao solo, e 50 Super Tucanos igualmente em serviço.
Essa frota rarefeita dá um aparelho para cada 50.000 quilômetros quadrados do território nacional, em relação a uma concentração dez vezes maior no Peru, prestes a ser alcançada pela Venezuela. Apesar disso, o tecido industrial implantado no Brasil garante uma capacidade de recuperação incomparável na região. A Aeronáutica dispõe de uma infra-estrutura de ensino e de pesquisa sem rival, com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica e o Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial. Mas essa reserva de saber é só uma derradeira linha de segurança para salvar o núcleo de excelência. Se precisar agir, o Brasil não tem como dar conta da tarefa. O principal desafio, como se vê na reportagem a seguir, é defender a Amazônia.














Nossa fronteira mais vulnerável
Como é a vida dos soldados que monitoram 11.500 quilômetros na Floresta Amazônica
Matheus Leitão, de Manaus

Aru é um fenômeno natural comum da selva amazônica – e aparentemente inofensivo. Presente durante todo o ano, mais intenso na estação da cheia, ele é causado pela alta umidade e gera neblina na copa das árvores. É aquela cerração que, vista de cima, parece uma camada de algodão sobre a floresta. Em junho passado, essa fina névoa ensinou uma vez mais que, na selva, nada deve ser menosprezado. Um helicóptero Pantera, do Exército, tentou furar o Aru que se formara no fim de uma tempestade sobre um afluente do Rio
Amazonas. Ele se desorientou e desabou na água. O piloto, capitão Marco Aurélio da Silva Martins, morreu na hora. Outros quatro tripulantes sobreviveram.
Não é fácil a vida de militar na Amazônia, onde eles estão cada vez mais presentes. Há profissionais de todas as regiões do país – também índios amazônicos. O capitão Daniel Rosar Fornazari, de 34 anos, curitibano, foi transferido há dois anos para Manaus. Casado com Taís, de 29, ele é pai de dois filhos, Pedro, de 6, e Beatriz, de 3. Fornazari faz parte de um movimento gradual, organizado pelas Forças Armadas, que leva para lá batalhões e serviços outrora destinados a proteger outras áreas. Eles chegam com a missão de tomar conta de um pedaço cada vez mais importante do solo brasileiro. Em 1950, havia apenas mil homens para controlar a fronteira amazônica. Hoje, são 25 mil. Ao todo, cinco brigadas já foram transferidas das regiões Sul e Sudeste, como a de Niterói (Rio de Janeiro), removida para São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), e a de Santo Ângelo (Rio Grande do Sul), que foi para Tefé (Amazonas).
Fornazari, especialista em confecção e análise de mapas, é o militar típico da geração atual. Saiu da terra natal para se formar em Santana do Livramento (Rio Grande do Sul). Ali, casou-se. Voltou ao Paraná e serviu em Castro por três anos, quando chegou o primeiro filho. Foi novamente para o Rio Grande, em Jaguarão, onde nasceu a caçula. Três anos se passaram e nova mudança: desta vez para Manaus, onde a família inteira sentiu o choque da temperatura. “Foi horrível. A adaptação ao calor foi complicada, meus filhos tiveram alergias fortes. Agora, soubemos que vamos mudar de novo”, diz Taís, o rosto coberto de suor, numa vila militar distante uns 15 quilômetros do Comando Militar da Amazônia (CMA), quartel-general central de defesa da Amazônia, em Manaus.
As casas simples, em terrenos de 700 metros quadrados, idênticas, todas brancas, dão a impressão de uma cidade cenográfica. O capitão Fornazari e a família partem, em janeiro, rumo a Brasília. “A gente se acostuma com essa vida de nômade”, afirma ele. Taís interrompe para dizer que só não se acostuma com os preços altos dos hortifrutigranjeiros em Manaus: “O que custa 50 centavos no sul, aqui é R$ 5, como a alface. Ou a caixa de morangos, de R$ 3 para R$ 10. Tudo vem de avião”.
Naquela imensidão territorial, com pelo menos 3,5 milhões de quilômetros quadrados, o trabalho de Fornazari é fundamental. Ele faz mapas, detalhados, precisos. No ano passado, dedicou-se a desenhar mapas das unidades de conservação (UCs), para que o Exército possa conhecê-las melhor e, assim, protegê-las. As UCs são locais a preservar, guardados para o futuro do país. O presente é o calor, a rotina dura e a sensação de que a feira tem preços que exorbitam.
Nesse capítulo, Taís não está sozinha na luta da calculadora pela salada de cada dia. O tenente Viviene Cristina Walz de Freitas, de 27 anos, também é oficial do Exército. Formada em Direito, entrou para a vida militar por concurso há poucos anos e também faz parte da modernização do efetivo. Aprovada no Paraná, veio para Manaus em 2006. É assessora jurídica do CMA. “Aqui, a alimentação é cara, mas todos os militares do país deveriam passar por aqui para ter a noção da importância da Amazônia”, diz ela. Fornazari ou Viviene teriam de investir R$ 1.800 se quisessem visitar os familiares no Sul – algo que raramente fazem.
A realidade material é áspera e, no caso do helicóptero Pantera que matou o capitão Marco Aurélio, resvala para a tragédia. O Pantera foi muito usado pelos americanos no Vietnã. Arma desenhada meio século atrás, lembra um mundo com muros que não existem mais. Tecnologicamente ultrapassado, faz parte de um lote comprado na metade da década de 80. Agora, com o acidente, somente 11 deles estão ativos numa faixa de fronteira terrestre de 11.500 quilômetros, mais de quatro vezes a extensão da fronteira dos Estados Unidos com o México, violada diariamente por migrantes ilegais, drogas e toda espécie de trânsito indesejado. Com seus 40 anos de uso cotidiano, são também numericamente insuficientes para o desafio. “É muito pouco. O ideal seria, pelo menos, dobrar a frota”, afirma o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia.
Aru é um fenômeno natural comum da selva amazônica – e aparentemente inofensivo. Presente durante todo o ano, mais intenso na estação da cheia, ele é causado pela alta umidade e gera neblina na copa das árvores. É aquela cerração que, vista de cima, parece uma camada de algodão sobre a floresta. Em junho passado, essa fina névoa ensinou uma vez mais que, na selva, nada deve ser menosprezado. Um helicóptero Pantera, do Exército, tentou furar o Aru que se formara no fim de uma tempestade sobre um afluente do Rio Amazonas. Ele se desorientou e desabou na água. O piloto, capitão Marco Aurélio da Silva Martins, morreu na hora. Outros quatro tripulantes sobreviveram.
Não é fácil a vida de militar na Amazônia, onde eles estão cada vez mais presentes. Há profissionais de todas as regiões do país – também índios amazônicos. O capitão Daniel Rosar Fornazari, de 34 anos, curitibano, foi transferido há dois anos para Manaus. Casado com Taís, de 29, ele é pai de dois filhos, Pedro, de 6, e Beatriz, de 3. Fornazari faz parte de um movimento gradual, organizado pelas Forças Armadas, que leva para lá batalhões e serviços outrora destinados a proteger outras áreas. Eles chegam com a missão de tomar conta de um pedaço cada vez mais importante do solo brasileiro. Em 1950, havia apenas mil homens para controlar a fronteira amazônica. Hoje, são 25 mil. Ao todo, cinco brigadas já foram transferidas das regiões Sul e Sudeste, como a de Niterói (Rio de Janeiro), removida para São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), e a de Santo Ângelo (Rio Grande do Sul), que foi para Tefé (Amazonas).
Fornazari, especialista em confecção e análise de mapas, é o militar típico da geração atual. Saiu da terra natal para se formar em Santana do Livramento (Rio Grande do Sul). Ali, casou-se. Voltou ao Paraná e serviu em Castro por três anos, quando chegou o primeiro filho. Foi novamente para o Rio Grande, em Jaguarão, onde nasceu a caçula. Três anos se passaram e nova mudança: desta vez para Manaus, onde a família inteira sentiu o choque da temperatura. “Foi horrível. A adaptação ao calor foi complicada, meus filhos tiveram alergias fortes. Agora, soubemos que vamos mudar de novo”, diz Taís, o rosto coberto de suor, numa vila militar distante uns 15 quilômetros do Comando Militar da Amazônia (CMA), quartel-general central de defesa da Amazônia, em Manaus.
As casas simples, em terrenos de 700 metros quadrados, idênticas, todas brancas, dão a impressão de uma cidade cenográfica. O capitão Fornazari e a família partem, em janeiro, rumo a Brasília. “A gente se acostuma com essa vida de nômade”, afirma ele. Taís interrompe para dizer que só não se acostuma com os preços altos dos hortifrutigranjeiros em Manaus: “O que custa 50 centavos no sul, aqui é R$ 5, como a alface. Ou a caixa de morangos, de R$ 3 para R$ 10. Tudo vem de avião”.
Naquela imensidão territorial, com pelo menos 3,5 milhões de quilômetros quadrados, o trabalho de Fornazari é fundamental. Ele faz mapas, detalhados, precisos. No ano passado, dedicou-se a desenhar mapas das unidades de conservação (UCs), para que o Exército possa conhecê-las melhor e, assim, protegê-las. As UCs são locais a preservar, guardados para o futuro do país. O presente é o calor, a rotina dura e a sensação de que a feira tem preços que exorbitam.
Nesse capítulo, Taís não está sozinha na luta da calculadora pela salada de cada dia. O tenente Viviene Cristina Walz de Freitas, de 27 anos, também é oficial do Exército. Formada em Direito, entrou para a vida militar por concurso há poucos anos e também faz parte da modernização do efetivo. Aprovada no Paraná, veio para Manaus em 2006. É assessora jurídica do CMA. “Aqui, a alimentação é cara, mas todos os militares do país deveriam passar por aqui para ter a noção da importância da Amazônia”, diz ela. Fornazari ou Viviene teriam de investir R$ 1.800 se quisessem visitar os familiares no Sul – algo que raramente fazem.
A realidade material é áspera e, no caso do helicóptero Pantera que matou o capitão Marco Aurélio, resvala para a tragédia. O Pantera foi muito usado pelos americanos no Vietnã. Arma desenhada meio século atrás, lembra um mundo com muros que não existem mais. Tecnologicamente ultrapassado, faz parte de um lote comprado na metade da década de 80. Agora, com o acidente, somente 11 deles estão ativos numa faixa de fronteira terrestre de 11.500 quilômetros, mais de quatro vezes a extensão da fronteira dos Estados Unidos com o México, violada diariamente por migrantes ilegais, drogas e toda espécie de trânsito indesejado. Com seus 40 anos de uso cotidiano, são também numericamente insuficientes para o desafio. “É muito pouco. O ideal seria, pelo menos, dobrar a frota”, afirma o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia.
Todos os pelotões de fronteira foram construídos com um pavilhão extra, para abrigar funcionários da Polícia Federal, do Ibama e da Receita Federal, que deveriam trabalhar em conjunto com o Exército. Uma idéia simples, praticada no Brasil: integrar as várias agências do Estado. O problema é que esses pavilhões destinados às agências civis ficam às moscas. O abandono impõe ao Exército outra missão para a qual não foi preparado. “Nenhum desses espaços está ocupado em toda a defesa amazônica”, afirma o general Heleno. “Nunca vi cocaína. Não sei diferenciar a droga da farinha ou do açúcar. Quem foi treinado para isso, os órgãos competentes, não tem efetivos para mandar para a selva.” A Receita poderia ajudar a controlar a fuga de guerrilheiros colombianos para o Brasil, muitas vezes com documentos falsos.
O que dá orgulho a quem serve na floresta é o soldado, que Heleno elogia sem pestanejar. Boa parte dos cabos e soldados engajados na Amazônia são índios, naturalmente adaptados para agir na selva. Desde o fim da década de 90, o búfalo é usado por eles como meio eficaz de transporte de suprimento. Fortes e dóceis, esses animais carregam 500 quilos, algo como quatro metralhadoras MAG 762 e comida para 20 homens. Percorrem até 15 quilômetros por dia, comendo o que encontram pela frente com gosto de clorofila. O soldado Anderson Correia de Almeida é um dos mais experientes e treina recrutas para lidar com o animal no Centro de Instrução de Guerra na Selva, o Cigs.
A hierarquia dos pelotões de fronteira é formada, na maioria, por oficiais e sargentos treinados no Cigs. O curso massacra. São 11 semanas sem descanso, nove delas dentro da floresta, que já formaram 4.500 militares brasileiros – além de outros 380 estrangeiros. Dez morreram durante o curso, que existe desde 1966. Na média, cada militar que entra para o Cigs e consegue fazer a carga horária completa sai oito quilos mais magro. O capitão Fornazari fez um estágio nesse curso. Por ter gente assim sob seu comando, o general Heleno garante que a prioridade do momento não é aumentar a tropa. Ele quer, em primeiro lugar, melhorar a infra-estrutura.
Há duas semanas, apresentou a dois visitantes ilustres, na sala de reuniões do Q.G., um estudo sobre o “Papel do Exército Brasileiro na Defesa da Amazônia”. Quem assistia à apresentação eram os atores Victor Fasano e Christiane Torloni, patrocinadores do site “Amazônia para sempre”. Uma das telas exibe a pergunta crucial: “Por que insistimos no reaparelhamento e modernização da Amazônia?”. E dá a resposta: “Porque é a possibilidade mais provável de emprego das Forças Armadas brasileiras no mundo de hoje”. Essa nova mentalidade militar brasileira é a essência do plano estratégico de defesa do país, que será apresentado dentro de algumas semanas. Na próxima reportagem, o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, adianta qual deverá ser o novo papel das Forças Armadas.






TERRENO PANTANOSO
Soldado usa búfalo para atravessar rio amazônico. Desde os anos 90, os animais, fortes e dóceis, são usados como meio de transportar suprimentos. Eles carregam 500 quilos, ou quatro metralhadoras e comida para 20 homens.



O projeto de Mangabeira Unger
Os planos ambiciosos do ministro para implantar no Brasil uma “cultura militar vanguardista”
Ricardo Amaral

Um ano inteiro de discussão e estudo, articulados pelo ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, resulta num projeto que poucos civis se julgariam capacitados a levar adiante: a construção de uma Estratégia Nacional de Defesa. Seu objetivo, ambicioso, é dotar o Brasil de uma “cultura militar vanguardista”, a partir da reorganização, da reorientação e do reequipamento das Forças Armadas. Os instrumentos para isso vão além da óbvia aquisição de armas e equipamentos modernos e do domínio das tecnologias de combate e de vigilância do território. No topo da hierarquia, o plano prevê a integração real do comando das forças de terra, mar e ar, algo que nunca existiu no país. Na base, Mangabeira propõe a formação de um militar de novo tipo, “um guerreiro capacitado a atuar como guerrilheiro quando necessário”.
Na tradição histórica, houve momentos em que as Forças Armadas decidiam o que seria melhor para o país. Mangabeira diz que é a primeira vez que o país discute o que é melhor para as Forças Armadas. Seu trabalho deve seguir para deliberação do Conselho Nacional de Defesa, foro que inclui os presidentes da Câmara e do Senado, em reunião prevista para 20 de outubro.
A primeira proposta é reorganizar o topo da hierarquia militar, com a criação do Estado-Maior Conjunto da Defesa. “Não pode haver três doutrinas diferentes, uma do Exército, outra da Marinha e outra da Aeronáutica”, diz Mangabeira. “A doutrina será definida no Estado-Maior Conjunto.” No Brasil, onde as três forças competem por recursos e prestígio, esse é um desafio histórico, que nem a criação do Ministério da Defesa, em 1999, superou. O plano redefine a atuação das três forças: “Elas têm de ter capacidade de atuar em rede”. Ele também estipula a unificação da compra de armamentos, para evitar superposições, desperdícios e incompatibilidades.
As novas Forças Armadas terão de garantir o monitoramento do território e desenvolver aptidões de mobilidade e presença. “O monitoramento do território hoje depende de tecnologias estrangeiras e até da compra de imagens de satélites produzidas por outros países. Isso tem de mudar”, afirma Mangabeira. Somem-se a isso os instrumentos tecnologicamente adequados para o deslocamento dos militares e uma “presença exemplar nas fronteiras terrestres e marítimas”. Embora não diga, ele está se referindo a bons jatos, helicópteros, navios e pelo menos um submarino com propulsão nuclear. “Os equipamentos não são a estratégia, eles são apenas os instrumentos para executá-la”, afirma.
Pelo novo plano, será necessário dominar os vetores estratégicos: nuclear, cibernético e espacial. “É necessário assegurar que estejam sob inteiro controle nacional”, diz. Para comprar novos equipamentos, o Brasil deverá reforçar a exigência de que a tecnologia seja transferida junto com o material. E alcançar, também, a condição de aperfeiçoar e atualizar cada equipamento. A Constituição e a adesão do Brasil ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear proíbem o uso de tecnologia nuclear para fins militares. Mas não o seu domínio. “A renúncia ao uso de armas nucleares só pode ser vista como decisão do país, não como fruto de impotência tecnológica”, afirma Mangabeira. Ele não diz, mas fica claro que o reequipamento das Forças Armadas inclui a capacitação para produzir e lançar bombas atômicas.
O novo modelo exigirá, segundo Mangabeira, a reestruturação da indústria bélica, num regime especial de relacionamento com seu maior cliente: o Estado. Os fabricantes de armas e munições devem ter estímulos fiscais e garantias, e isso deve exigir um novo capítulo na Lei de Licitações. Ao lado da indústria privada, ele pretende especializar a indústria bélica estatal naqueles projetos de alta tecnologia que não atraem investidores privados.
Para as tropas, Mangabeira persegue o modelo de um soldado com formação para integrar uma Brigada de Operações Especiais, um grupo qualificado, como aquele que está na vanguarda da missão de paz no Haiti. Ele é o militar qualificado e autônomo, capaz de atuar até como guerrilheiro, na definição de Mangabeira. “Atualmente, as forças estratégicas rápidas constituem apenas 10% do efetivo”, diz. Também será necessário redefinir o modelo de recrutamento, hoje voluntário, que praticamente atrai jovens pobres. Mangabeira prefere um modelo em que todos sejam obrigados a prestar serviço militar ou civil, e as Forças Armadas possam selecionar os mais aptos. A nova Estratégia terá um custo seguramente alto. “Mas é uma opção que temos de assumir: nada custa mais caro que a independência nacional”, diz Mangabeira.


Da guerra para a vida civil
Como o investimento nas mais modernas tecnologias militares se transforma em benefícios para o dia-a-dia de todos nós
Lia Vasconcelos

Canhões poderosos, trincheiras, grossas blindagens, tudo isso está ficando rapidamente para trás quando se trata de defender uma sociedade contemporânea. A guerra atualmente se decide com o domínio de cinco conceitos de alta tecnologia, representados no jargão militar pela sigla 4Ci: comando, controle, comunicação, computação e informação. A fórmula também tem outro nome: Network Centric Warfare (NCW) ou, em português, Guerra Centrada em Rede.
O que é isso? Eis a definição do brigadeiro engenheiro Venâncio Alvarenga Gomes, do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), de São José dos Campos: “É a criação de uma rede de sensores, centros de comando e controle, além de sistemas de armas, tudo integrado com o objetivo de transformar o gerenciamento de informações em superioridade estratégica”.
Tradução para os leigos: a guerra se passa como se fosse travada num terminal de computador de alta velocidade, cujos sistemas facultam o uso simultâneo de imagens de televisão, som ambiente do campo de luta, canais de voz para que as instruções subam e desçam na hierarquia sem ruídos ou interferência e memória com capacidade suficiente para que os generais acessem tudo. Assim, do vértice da cadeia de comando, os comandantes podem enxergar a cena completa antes de disparar instruções.
É por causa do NCW que os soldados na vanguarda, além de armas e coletes à prova de balas, envergam aqueles capacetes amarrados com tira de velcro, que têm microfone e ponto de áudio embutidos, além de minicâmera de TV escondida no topo, como um pequeno periscópio. Eles servem para registrar e transmitir ao posto de comando, na retaguarda, tudo o que aparece no raio de visão de cada combatente. Quando um deles leva um tiro, o comandante pode informar ao substituto a provável localização do atirador. O sensoriamento humano pode ainda ser acompanhado por satélites espiões, que transmitem as cenas do deslocamento a partir de um posto de observação espacial.
Tanta informação junta requer uma tecnologia muito superior à disponível nos sistemas comerciais de informação, de uma geração anterior à da rede de uso militar. A NCW exige os recursos mais avançados de tecnologia da informação, com a transmissão de dados por satélite em banda larga e softwares capazes de distribuir o processamento em rede de modo seguro. Além disso, é preciso garantir a transferência eficaz de informações entre as redes com diferentes níveis de segurança e sigilo, por meio dos mais modernos recursos de codificação e criptografia dos dados. E acessar as informações mais precisas do sistema de Satélites de Posicionamento Global (GPS) nos ambientes terrestre e urbano.
O Brasil tem um domínio tecnológico incontestável nesse campo. Principalmente graças aos centros de pesquisa que gravitam em torno do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a faculdade de Engenharia que a Força Aérea fundou em 1948 e se tornou fonte de conhecimento capaz de gerar empresas como a Embraer. Ou instituições privadas de conhecimento, como a Atech, responsável pela inteligência que faz do Brasil um dos seis países no mundo com domínio do controle de tráfego aéreo. O Exército e a Marinha têm, igualmente, seus pólos de excelência na pesquisa aplicada, mas, na sociedade contemporânea, as pesquisas com mais brilho e impacto vêm do setor aeroespacial.
O ciclo de aquisição do conhecimento a partir da pesquisa militar está na raiz da rápida evolução da Embraer. A empresa fazia turboélices até o começo da década de 80, quando a Força Aérea Brasileira decidiu fazer, aqui mesmo, um jato de ataque ao solo, o AMX, em projeto conjunto com a italiana Aeromacchi. Foi quando os técnicos adquiriram o conhecimento necessário para executar o processo de amarração da poderosa turbina dos jatos de combate à nacela metálica que forma a estrutura do avião. Disso acabou surgindo uma família de jatos comerciais que hoje domina o mercado mundial de vôos regionais.
De modo similar, nos Estados Unidos, surgiu a internet, rede de computadores que se propagou como ferramenta de acesso a informações eletrônicas. Ela entrou no ar em 1969. Era um meio seguro para troca de informações entre bases militares, mesmo que houvesse um ataque nuclear que as isolasse fisicamente. A eficácia do sistema ficou comprovada definitivamente em 1991. As tropas que invadiam o Iraque tentaram neutralizar a rede de comando erigida pelo regime do ditador Saddam Hussein. Descobriam estar atacando sua própria criação.
Parece estranho falar em desenvolvimento de tecnologia para a guerra em tempos de paz. Mas todo especialista concorda que, fora seu papel fundamental na soberania de um país, o sistema de defesa contribuiu para que as empresas brasileiras ingressassem na era da inovação. O pesquisador Waldimir Pirró e Longo, do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, conta que inúmeras tecnologias de produtos, processos ou serviços desenvolvidas especificamente para atender às necessidades militares de defesa acabaram sendo usadas como produtos no dia-a-dia (leia o quadro abaixo).
“Precisamos dominar o ciclo completo desse conhecimento”, afirma Tarcísio Takashi Muta, presidente da Atech. “Só com estratégias de longo prazo controlaremos as tecnologias que alicerçam a informação e a interpretação dos acontecimentos. É preciso conquistar o ciclo completo dessa engenharia para não sermos escravos eternos de importações de equipamentos”. O legado tecnológico futuro seria, portanto, mais um benefício do investimento em tecnologia militar no Brasil do presente.





CAÇA AMX
O avião militar é fruto da decisão da FAB de desenvolver um jato com a italiana Aeromacchi








A Caserna e as ruas
Tecnologias militares que transformaram o cotidiano


GPS
Motoristas chegam a locais inacessíveis graças ao sistema de localização. O Departamento de Defesa de Washington pagou US$ 10 bilhões para cobrir de sinais com seus 28 satélites o globo desde 1996. Pode desliga-los se quiser.




FORNO MICROONDAS
Percy Spencer testava um radar. A barra de chocolate derreteu em seu bolso. E o milho da pipoca estourou em nevados flocos a cada ação do circuito magnético. O achado do oficial da Marinha dos Estados Unidos invadiu cozinhas com o fim da Segunda Guerra Mundial.


INTERNET
Um quinto da população mundial acessa a rede. Em 1969, o Pentágono a criou para trocar informações mesmo sob um ataque nuclear. Levou 27 anos para qualquer computador poder usá-la.




PROJÉTEIS BANHADOS COM TEFLON
O polímero plástico à base de flúor ganhava aderência se combinado a moléculas de ferro. Depois, espalharam-no numa frigideira. Levou cinco décadas para que um fabricante o aplicasse à ponte de suas carabinas. Ele destroçou coletes à prova de balas.

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